Suficientemente bons: desafiando a tirania da excelência

A obsessão pela perfeição: um diagnóstico do nosso tempo

Vivemos numa era obcecada pela optimização. Do momento em que acordamos, rastreados por aplicações que analisam os nossos padrões de sono, até ao instante em que nos deitamos, após termos contabilizado cada caloria ingerida e cada passo dado, estamos num estado de incessante avaliação e perpétuo aperfeiçoamento. Esta mentalidade, que inicialmente parecia promissora - afinal, quem não quer ser a melhor versão de si mesmo? - tem-se revelado uma fonte inesgotável de ansiedade, insatisfação e, paradoxalmente, de mediocridade generalizada.

Estamos a investir quantias incomensuráveis no desenvolvimento da Inteligência Artificial, por exemplo, enquanto negligenciamos o desenvolvimento humano - intelectual, emocional, espiritual e filosófico 1. Esta é uma miopia perigosa: optimizámos os nossos sistemas para a eficiência e inovação tecnológica, deixando as nossas capacidades para empatia, compreensão cultural e raciocínio ético largamente por desenvolver.

A ironia é palpável: na nossa busca incansável pela excelência, tornamo-nos escravos de métricas arbitrárias, perdendo de vista o que realmente importa. Como observei noutro contexto, “estamos a deixar de saber estar presentes e, como consequência, estamos a deixar de saber pensar num determinado sentido; deixámos de saber contemplar e de saber elaborar sobre o que contemplamos.”2 Esta obsessão pela perfeição não é apenas um fenómeno individual; infiltrou-se nas nossas instituições, nas nossas relações e na própria forma como concebemos o sucesso e o valor humano.

Os custos ocultos da excelência

Barry Schwartz, no seu livro “The Paradox of Choice”, introduz-nos aos conceitos de maximizers e satisficers, que traduzirei por “maximizadores” e “contentadores”. Os “maximizadores” são aqueles eternamente em busca da melhor opção possível, enquanto os “contentadores” se contentam com o que é “suficientemente bom”. À primeira vista, poderíamos pensar que os primeiros levariam vantagem neste mundo competitivo.

No entanto, a realidade é bem diferente. Schwartz argumenta, e estudos subsequentes confirmam, que os “contentadores” tendem a ser mais felizes, menos ansiosos e, surpreendentemente, muitas vezes mais bem-sucedidos a longo prazo. Porquê? Porque enquanto os “maximizadores” estão paralisados pela análise excessiva e pelo medo de fazer a escolha errada, os “contentadores” avançam, aprendem com a experiência e, ironicamente, muitas vezes acabam por fazer escolhas melhores.

Este desequilíbrio criou um paradoxo: estamos mais conectados mas menos compreensivos, mais informados mas menos sábios, mais capazes mas menos realizados. Como navegamos num mundo onde a polarização aumenta, onde as transformações tecnológicas são vertiginosas, e onde os desafios que enfrentamos - das alterações climáticas às desigualdades económicas - são sistémicos e interligados?

Este fenómeno não se limita às decisões de consumo. No mundo profissional, vemos uma dinâmica semelhante. As empresas que exigem “excelência” constante dos seus funcionários - através de avaliações de desempenho implacáveis, metas sempre crescentes e a expectativa de que todos devem ir “além e acima” (tradução propositadamente pobre da expressão anglófona above and beyond, evitando usar outra que abomino: extra mile) - muitas vezes acabam por criar ambientes tóxicos que sufocam a criatividade, minam a colaboração e levam ao burnout.

A sabedoria do “suficientemente bom”

É neste contexto que o conceito de “suficientemente bom”, proposto pelo psicanalista Donald Winnicott, ganha uma relevância surpreendente e atual. Podemos conjecturar que Winnicott, ao desenvolver a sua teoria sobre a “mãe suficientemente boa”, não estava apenas a falar sobre parentalidade. Estava a oferecer uma perspectiva profunda sobre o desenvolvimento humano e, por extensão, sobre como podemos florescer como indivíduos e sociedade.

A “mãe suficientemente boa”, segundo Winnicott, obviamente, não é perfeita. É o contrário da perfeição: comete erros, às vezes falha em atender as necessidades do bebé, outras interpreta mal os sinais. Mas - e este é o ponto crucial - estas falhas não são catastróficas. Pelo contrário, são essenciais. São estas pequenas frustrações, administradas em doses toleráveis, que permitem à criança desenvolver resiliência, autonomia e um sentido realista de si mesma e do mundo.

Transpondo este conceito além da relação mãe-filho, podemos ver como a ideia de ser “suficientemente bom” tem implicações profundas para a forma como vivemos e trabalhamos. Imagine um ambiente de trabalho onde o foco não está em ser sempre o melhor, mas em ser consistentemente bom o suficiente. Onde os erros não são vistos como falhas catastróficas, mas como oportunidades de aprendizagem e crescimento. Onde a colaboração é valorizada acima da competição, porque não há necessidade de provar constantemente a própria superioridade.

O que precisamos não são mais competências isoladas, sejam elas ‘duras’ ou ’moles’3 - uma distinção que se revela cada vez mais obsoleta. Precisamos de desenvolver meta-competências: capacidades fundamentais que nos permitem aprender, adaptar e evoluir continuamente. Estas incluem a capacidade de aprender a aprender, de manter conversas éticas, de escutar profundamente, de desenvolver consciência emocional, de cultivar uma curiosidade transformadora, e de manter uma integridade coerente em todos os contextos.

Este não é um apelo à mediocridade. Pelo contrário, é um convite a uma forma mais sustentável e, paradoxalmente, mais produtiva de excelência. Porque quando não estamos constantemente esgotados pela pressão de sermos perfeitos, temos mais energia e criatividade para realmente inovar e crescer.

A falácia do “faz o que gostas”

Uma das maiores trapaças que é gerada pela nossa obsessão pela excelência é o mantra “faz o que gostas e nunca mais terás de trabalhar um dia na tua vida”. Esta ideia, repetida ad nauseam em palestras motivacionais e posts no LinkedIn, é não apenas irrealista, mas potencialmente prejudicial.

A solução proposta para os que estão insatisfeitos com os seus empregos é frequentemente “torna-te um empreendedor!”. Como se esse fosse o caminho para se encontrar o que se gosta e, num espectacular erro de lógica, deixar de fazer fretes e alcançar satisfação eterna. Promessas da Igreja Universal do Reino do Empreendedorismo 4, ou dos “caçadores de unicórnios”.

Porém, como Byung-Chul Han argumenta em “A Sociedade do Cansaço”, os empreendedores modernos muitas vezes tornam-se “escravos de si mesmos”. Sem os limites impostos por um empregador externo, muitos empreendedores trabalham horas intermináveis, sacrificando saúde, relacionamentos e qualidade de vida no altar do sucesso.

Entre o stress de trabalhar para outrem ou ser empreendedor, é difícil dizer qual cenário gera mais tensão e ansiedade. O filósofo coreano chega mesmo a sugerir que os trabalhadores por conta própria podem até estar numa condição pior que os que trabalham para outros. A ilusão dos primeiros será maior, estará mais instalada e será mais egossintónica. A verdadeira liberdade, sugiro, não está em encontrar o trabalho perfeito ou, necessariamente, em ser o seu próprio chefe, mas em desenvolver uma relação mais saudável e equilibrada com o trabalho em si.

O mito do líder perfeito: Por que precisamos de bons chefes, não de super-heróis

No mundo corporativo actual, poucas palavras são tão veneradas quanto “liderança”. Livros, seminários e programas de formação prometem transformar gestores comuns em líderes visionários, capazes de inspirar e motivar equipas para alcançar o impossível. Esta obsessão com a liderança, embora bem-intencionada, muitas vezes resulta na criação de expectativas irrealistas e potencialmente prejudiciais.

O conceito moderno de “líder” tornou-se quase mitológico. Esperamos que os líderes sejam visionários estratégicos, comunicadores carismáticos, mentores empáticos e decisores implacáveis - tudo ao mesmo tempo. Esta imagem do líder como uma espécie de super-herói organizacional não só é irrealista, como também pode ser contraproducente.

Como observei noutro escrito 5, esta idealização da liderança tem levado muitos a rejeitar o termo “chefe”, considerando-o antiquado ou até pejorativo. “Não quero ser visto como um chefe, quero ser reconhecido como um líder”, é uma frase que ouço com frequência preocupante. Em aulas e palestras, perante as minhas tentativas de reintroduzir este termo no léxico comum, é habitual haver resistência evidente na audiência, tal é o nível de contaminação da palavra. Mas o que estamos a perder nesta busca pela liderança perfeita?

A distinção entre “chefe” e “líder” não é tão clara ou importante quanto muitos gurus de gestão nos querem fazer crer. Um bom chefe - alguém que coordena, dirige, delega, pergunta, escuta, sugere, discute, conversa, aconselha, treina, demonstra e aprende - pode ser infinitamente mais valioso do que um “líder” que está sempre a tentar inspirar, motivar e “pensar fora da caixa”.

O problema com o culto da liderança é que não raras vezes cria uma pressão impossível para se ser excepcional, em todos os aspectos. Esta pressão não apenas se pode tornar insustentável para a pessoa, como também pode criar um ambiente de trabalho tóxico, onde os erros são vistos como falhas catastróficas e a vulnerabilidade é interpretada como fraqueza.

Além disso, a ênfase excessiva na liderança muitas vezes leva à negligência das habilidades práticas de chefia que são essenciais para o funcionamento eficaz de qualquer organização. Saber como definir metas realistas, oferecer opiniões e sugestões construtivas, resolver conflitos e garantir que o trabalho seja feito de maneira eficiente e saudável são capacidades cruciais, que nem sempre são carismáticas, mas são indispensáveis.

O que precisamos, portanto, não são super-heróis corporativos, mas sim chefes suficientemente bons. Com base no material fornecido, podemos identificar algumas características-chave das boas chefias:

  1. Escuta e Empatia: As boas chefias não têm pressa em expressar as suas opiniões ou em sufocar discussões. São genuinamente curiosas sobre o que os outros pensam e sentem. São pacientes, respeitam ritmos, disponibilidades e capacidades distintas.
  2. Abertura e Acessibilidade: São acessíveis e não defensivas diante de reclamações, o que gera confiança e melhora o fluxo de informações na equipa.
  3. Consciência e Competência: Estão cientes das suas próprias capacidades e limitações. Compreendem o trabalho que supervisionam, incluindo suas dificuldades e complexidades.
  4. Fomentam o Desenvolvimento através da conversação e das relações: Elogiam com generosidade e criticam com gentileza e firmeza. Identificam e nutrem o potencial das suas pessoas, apoiando o seu desenvolvimento contínuo.
  5. Gestão de Recursos: Preservam recursos, incluindo os emocionais e psicológicos. Respeitam o tempo e o espaço mental dos outros, sem exigir provas de lealdade que comprometam o bem-estar.
  6. Visão Estratégica e Coragem: Têm coragem para dizer “não” quando necessário, mesmo correndo riscos de curto prazo. Mantêm em vista tanto as necessidades imediatas quanto as de longo prazo.

Ao abraçar o conceito de ser um “chefe suficientemente bom”, podemos criar ambientes de trabalho mais saudáveis, produtivos e satisfatórios. Isto não significa baixar os padrões ou aceitar a mediocridade. Pelo contrário, significa estabelecer expectativas realistas e humanas, que permitam um crescimento sustentável e um verdadeiro desenvolvimento, tanto para os indivíduos quanto para as organizações.

Conclusão: Uma revolução do “suficientemente bom”

Então, como podemos navegar neste mundo obcecado pela perfeição sem sucumbir às suas pressões destrutivas? Sugiro um retorno consciente e intencional ao conceito de “suficientemente bom”. A filósofa Kate Soper reclama que tal movimento é parte da busca por um novo hedonismo, no seu livro “Post-Growth Living”. Isto não significa abandonar a ambição ou aceitar a mediocridade, mas sim reconhecer que a perfeição é inalcançável.

Imaginemos um mundo onde “suficientemente bom” fosse realmente suficiente. Um mundo onde pudéssemos desfrutar do lazer sem culpa, onde a criatividade fosse valorizada por si mesma e não pelo seu potencial lucrativo. Onde pudéssemos aceitar que, às vezes, fazer o nosso melhor é suficiente, mesmo que esse melhor não seja perfeito.

Este não é um mundo de mediocridade ou estagnação. Pelo contrário, é um mundo de inovação genuína, de relações humanas autênticas, de trabalho significativo e sustentável. É um mundo onde temos a liberdade de experimentar, falhar e aprender, sem o peso esmagador da expectativa de perfeição constante.

A revolução do “suficientemente bom” não é uma rendição aos nossos impulsos mais preguiçosos, embora implique o reconhecimento da sua existência. É uma rejeição consciente da mentalidade tóxica de crescimento a todo o custo, uma afirmação do nosso direito a uma vida equilibrada e significativa. É uma forma de resistência contra um sistema que nos quer sempre produtivos, sempre optimizados, sempre a consumir.

No final, talvez a verdadeira excelência não esteja em ser perfeito, mas em ser autenticamente, imperfeitamente, maravilhosamente humano. Ouvi muitas vezes o meu amigo e mentor Luis Carchack dizer que “nós, humanos, somos seres perfeitamente concebidos para sermos imperfeitos”.

Ao adotar esta mentalidade, não estamos a baixar os nossos padrões, mas sim a redefini-los de uma forma mais saudável e sustentável. Estamos a reconhecer que o valor de uma pessoa não está na sua capacidade de atingir a perfeição, mas na sua humanidade, na sua capacidade de aprender, crescer e contribuir de forma significativa para o mundo ao seu redor.

Esta mudança de paradigma tem o potencial de transformar não apenas as nossas vidas individuais, mas também as nossas organizações e sociedades como um todo. Imaginem empresas onde o foco está em criar valor sustentável a longo prazo, em vez de maximizar os lucros a curto prazo, a todo o custo. Imaginem escolas onde o objetivo é nutrir a curiosidade e o amor pela aprendizagem, em vez de produzir máquinas de testes padronizados. Imaginem uma sociedade onde o sucesso é medido não apenas pelo que alcançamos, mas também por como tratamos os outros e o planeta no processo.

A jornada para este mundo ‘suficientemente bom’ não será fácil. Não pode ser alcançada através de workshops de fim-de-semana ou livros de auto-ajuda. Requer tempo, dedicação e, crucialmente, dimensão comunitária. Como qualquer mudança importante, funciona melhor quando não é feita sozinha. Precisamos de criar espaços seguros onde possamos desenvolver estas capacidades fundamentais, onde possamos praticar a arte de ser suficientemente bons, onde possamos aprender uns com os outros e crescer juntos.

O verdadeiro desenvolvimento humano não acontece em silos ou através de fórmulas pré-fabricadas. Acontece através de um processo contínuo de aprendizagem, reflexão e prática - um processo que honra tanto a complexidade do nosso tempo como a profundidade da experiência humana. Só assim poderemos desenvolver as meta-competências necessárias não apenas para sobreviver neste novo mundo, mas para o moldar para melhor.

Passemos da imaginação à criação. Sejamos, então, suficientemente bons. E vejamos como isso pode ser mais do que suficiente.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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